Thursday 15 October 2009

Eu, Você, Nós 2

Viver sob o mesmo teto, na saúde e na doença, exige muito mais que amor. No modelo contemporâneo de convívio, há cada vez mais espaço para a individualidade - o casal não precisa ser aquele grude o tempo inteiro. Ainda bem.

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"Começaram a namorar quando ela tinha 15 anos de idade, ele 17. Oito anos depois, ele se formou engenheiro agrônomo. Determinada, ela o encostou na parede para que a pedisse em casamento na frente de toda a família. "Achei que nunca mais o veria, mas no dia seguinte ele apareceu em cada todo arrumado", diz a advogada Marjorie Marla de Macedo, de Florianópolis, hoje com 30 anos. Foram morar juntos quase três anos depois, antes de festejar o matrimônio. "Foi um choque. Cada um levou 100% da personalidade para dentro de casa. Mas foi determinante para sabermos que só continuaríamos com esses 100% se respeitássemos o que o outro era, sentia, pensava". Embora tenham se casado à moda antiga, não continuam juntos por conveniência, como se fazia nos velhos tempos, e sim pelas afinidades. "Sempre nos divertidos muito juntos, mas às vezes vou à praia com os amigos e ele passa horas no sítio dos pais cultivando as plantas. Damos força para que cada um faça o que gosta sem a necessidade de estar sempre juntos", afirma Marjorie. "O ser humano busca inteireza no mundo que o cerca. Isso inclui a relação com parceiros amorosos, que hoje se casam atraídos pela singularidade do outro", diz a especialista em psicologia clínica Denise Gimenez Ramos, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP).

O amor continua sendo lindo, mas é cada vez mais raro abrir mão do que se gosta em nome dele. Os casais começam a descobrir que respeitar de verdade gostos pessoais, manias, idiossincrasias - a tal singularidade - é cada vez mais uma peça importante no mecanismo que faz o casamento realmente funcionar.

Um e um são três
Estamos em tempos de ênfase ao individualismo. IPod, festas e viagens de mochilão nos põem em contato com nosso jeito single de ser. Um casal não foge à regra: é a soma de olhares de dois seres únicos. No estudo Casamento contemporâneo: O difícil convívio da individualidade com a conjugalidade, da PUC-RJ, a especialista em terapia familiar e de casal terezinha Féres-Carneiro afirma que, na lógica do matrimônio, um e um são três. A relação é determinada por dois sujeitos, duas percepções de mundo e dois projetos de vida que convivem com uma relação amorosa, uma identidade conjugal e um projeto de vida do casamento. Para Terezinha, aí está todo o fascínio e toda a dificuldade de ser casal hoje em dia. Não por nada, os casórios rareiam e os divórcios crescem. "Um casamento no Brasil dura em média dez anos porque, em geral, as pessoas não se aprofundam uma na outra", diz a terapeuta de casais Cláudya Toledo. Ser solteiro vira uma opção de vida exatamenta pela sensação de liberdade, de ser dono do próprio nariz. Para um casal criar um modelo único de convívio, com espaço para cada personalidade expressar o que sente, é preciso tempo e energia. Afinal, sentir que você se encaixa com alguém que admira soa como uma ameaça à própria identidade, já que você vai compartilhar com a pessoa momentos de uma vida que era só sua. "Tem gente que não tem paciência porque realmente dá trabalho. Mas vale a pena pelo amadurecimento, a amizade, o suporte emocional, os momentos engraçados, a nova percepção do mundo. Vale a pena pela história que você vive", diz Marjorie.

De fato, o ser humano não nasceu para viver só. Por isso, as amizades. Com os amigos, acima de tudo, trocamos ideias. Segundo o psiquiatra Flávio Gokovate, em Uma história de amor... com final feliz, nossos camaradinhas nos garantem um aconchego intelectual. O amor é diferente. Diz respeito à necessidade de ter de volta o colo materno, uma referência que fica registrada em nosso subconsciente. Com o passar dos anos e a manifestação mais internsa da sexualidade, essa sensação volta a definir as relações de um adulto. "Mesmo quando mal conhecemos a essoa escolhida, passamos a nutrir por ela um sentimento parecido com o que tínhamos por nossa mão", escreve Gikovate. Conquistado, o amor não satisfaz completamente. É como quando éramos crianças: ficar no colo da mãe era gostoso, mas significava parar de brincar e de fazer também o que nos dava na telha.

Foi assim que se configuraram os casamentos durante um bom tempo, em que pombinhos pensavam se bastar juntos no ninho de amor... E viviam, não é surpresa, uma série de momentos enfadonhos! Quem é que consegue satisfazer todas as vontades ao lado da mesma pessoa o tempo inteiro? "Acontece que a vida prática mudou muito. E, com ela, as motivações. Os casais estão juntos, mais do que tudo, para curtir a vida, para o convívio prazeroso e os projetos de vida mais voltados a atividades lúdicas. As diferenças passam a ser importante fator de irritação, ao passo que as afinidades se tornam muito mais interessantes", escreve o psiquiatra. Essa memória conjunta de vivências dá sentido à vida.

Os amigos por perto
Muita gente diz que é preciso amar a si mesmo para então amar o outro. Talvez não seja bem por aí. Gikovate descreve o amor como algo interpessoal. "É o sentimento que temos por quem nos provoca sensação de paz e aconchego", afirma em seu livro. Antes de entrar de cabeça em uma relação, cada um deve ter em mente em que pé está sua autoestima - que, para o psiquiatra, equivale a um juízo de valor, e não a um sentimento. "É uma espécie de nota que damos a nós mesmos - em geral, nota equivocada para menos". Por isso, deposita-se tanto no outro a expectativa de curar os próprios traumas, medos e desânimo. Mas também se cometem erros do outro lado. Achar bonitinha a carência rotineira do parceiro pode ser um grande problema. "É comum falar que esse é um defeito charmoso do outro, até que o tédio se instala no casamento", afirma Thiago de Almeida, psicólogo especializado em dificuldades de relacionamento amoroso. para Cláudya Toledo, não há mais espaço no casamento para pessoas que não sejam autossuficientes. "Ninguém deixa ninguém triste ou alegre. Essa questão é individual. Se estou mal, não vou chegar aos farrapos em casa para que meu parceiro me conserte. Vou fazer ioga, caminhar na praça, qualquer coisa que me faça bem. Ou vou debilitar o casamento", diz.

O mesmo vale para quem se deixa dominar pelo outro, empurrando o relacionamento por água abaixo. "Já cheguei a um ponto em que ele me manipulava, mas assim que percebi contei com os amigos e a família para voltar a ser quem eu era. Hoje, ele brinca dizendo que um dia vai me domar, o que na verdade o atrai", diz Marjorie, convencida de que dar a volta por cima, reafirmando seu jeito de ser, fortaleceu ainda mais a relação. "O que o fez se apaixonar por mim foi minha personalidade única, sui generis. Não faria sentido perdê-la". Uma de suas prioridades hoje é sair com as amigas. "Temos conversas só nossas, inclusive combinamos várias vezes de passar fins de semana juntas na praia, sem os maridos", diz a advogada. Até mesmo durante uma viagem, quando a agente de viagens Gwen Budal Arins passou dois meses na cada da mãe com o marido, ambos arrumaram tempo para seus programas solos. "Logo que conheceu meus amigos, ele já arranjou um lugar para jogar futebol toda semana, e eu tinha as amigas que não via há tempos para colocar o papo em dia", afirma Gwen.

Segundo a psicóloga Denise Gimenez Ramos, estar com os amigos no mundo moderno é vital para o equilíbrio emocional. "O casal que se fecha entra em rota de colisão. Ter privacidade com os amigos para falar bobagem e comer pipoca é importante, até porque as amizades perduram muito mais que o casamento", diz ela. Ao mesmo tempo, o espaço conquistado pela mulher no casamento propõe o ideal de igualdade. "No passado, era normal a mulher seguir em tudo e com todas as forças as decisões do marido. Hoje, os homens reconhecem sua realização pessoa, seu êxito profissional, suas qualidades, que a distinguem dele", afirma o consultor Vital Didonet, de Brasília, que completou 25 anos de casamento em 2008. Isso inclui a liberdade individual, essencial a todos em uma relação.

Detalhes de nós dois
Na hora de juntar os trapos, ter ajuda para botar a casa em ordem também é crucial para o bom convívio e, sem dúvida, mexe com o jeito de ser de qualquer um. Marorie nunca se deu bem com os trabalhos domésticos. "De repente, casei e tive que cuidar de tudo", diz. Mesmo depois de anos de namoro, o casal entrou em conflito por causa disso quando se viu sob o mesmo teto. "Ele vivia na frente do computador por causa da carreira acadêmica e eu sempre dizia que ele não trabalhava e, ainda por cima, não me ajudava em casa. Foi marcante quando disse o quanto ficava magoado comigo por não respeitar sua profissão. Tive que retroceder", diz a advogada. Ao pôr as cartas na mesa, dividiram as tarefas como rpeparar a refeição e lavar a louça. Além disso, ela passou a deixá-lo em paz ao vê-lo no computador, pois sabe o quanto precisa se concentrar nas pesquisas. "Quando esclarecemos as diferenças, é onde fica a singularidade de cada um. É preciso ter feeling para saber quando vale a pena mudar de atitude", diz Marjorie. As fraquezas nunca vão deixar de aparecer. Afinal, somos humanos. Mas, quando um casal prioriza o respeito às singularidades, a dependência emocional dá lugar à amizade, ao erotismo e aos planos em comum, construídos pelo olher que cada um lança na relação. "Os dois se apoiam, ajudam-se, fortalecem-se, consolam-se, mas sempre olhando para o que está adiante deles", diz o consultor Didonet. Juntos, sim. Grudados, jamais."

Texto Débora Didonê
Fonte: Revista Vida Simples, Edição 84, Outubro de 2009

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